segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Luuanda (José Luandino Vieira)

Vista aérea da cidade de Luanda (Fotografia de Carlos João)

Tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todos os lados do musseque∗, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas∗ arrumadas à toa. Assim, quando vavó adiantou sentir esses calores muito quentes e os ventos a não querer mais soprar como antigamente, os vizinhos ouviram-lhe resmungar talvez nem dois dias iam passar sem a chuva sair.

Ora a manhã desse dia nasceu com as nuvens brancas — mangonheiras∗ no princípio; negras e malucas depois — a trepar em cima do musseque. E toda a gente deu razão em vavó Xíxi: ela tinha avisado, antes de sair embora na Baixa∗, a água ia vir mesmo.

A chuva saiu duas vezes, nessa manhã.

Primeiro, um vento raivoso deu berrida∗ nas nuvens todas fazendo-lhes correr do mar para cima do Kuanza∗. Depois, ao contrário, soprou-lhes do Kuanza para cima da cidade e do Mbengu∗. Nos quintais e nas portas, as pessoas perguntavam saber se saía chuva mesmo ou se era ainda brincadeira como noutros dias atrasados, as nuvens reuniam para chover mas vinha o vento e enxotava. Vavó Xíxi tinha avisado, é verdade, e na sua sabedoria de mais velha custava falar mentira. Mas se ouvia só ar quente às cambalhotas com os papéis e folhas e lixo, pondo rolos de poeira pelas ruas. Na confusão, as mulheres adiantavam fechar janelas e portas, meter os monas∗ para dentro da cubata, pois esse vento assim traz azar e doença, são os feiticeiros que lhe põem.

José Luandino Vieira

∗ musseque — antigo bairro popular, urbano ou suburbano.
∗ cubata — habitação feita de restos de materiais de construção; barraco, casebre.
∗ mangonheiro — preguiçoso, lento; malandro, vadio.
∗ Baixa — parte baixa da cidade de Luanda; centro comercial.
∗ berrida — corrida. Dar barrida — dar uma corrida (em alguém); afugentar, afastar com violência; expulsar.
∗ Kuanza — principal rio de Angola; nasce no planalto do Bié e deságua ao sul de Luanda.
∗ Mbengu — rio de Angola, a norte de Luanda.
∗ mona — criança.


José Luandino Vieira, é o pseudónimo literário do escritor angolano José Vieira Mateus da Graça, que nasceu em Vila Nova de Ourém, Portugal, a 4 de Maio de 1935.

Luuanda é um romance publicado em 1963.

Para saber mais de José Luandino Vieira.

Em 2006 Luandino Vieira recusou o Prémio Camões por "razões pessoais" (ler aqui)



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sociedade de Consumo



- Boa tarde!
- Boas... Diga.
- Queria uma água com gás.
- Fresca ou natural?
- Fresca.
- Com ou sem sabor?
- Pode ser de limão.
- Frize limão, Castelo Bubbles, Carvalhelhos limão?
- Sei lá, traga-me uma qualquer... Frize.
- Frize limão já acabou.... Pode ser morango, tangerina ou maracujá?
- Esqueça... Traga-me umas Pedras...
- Fresca ou natural?
- Fresca...
- Com ou sem limão?
- Sem…
- Normal ou levíssima?
- Quem?
- Normal ou uma nova que saiu, que é mais leve....?
- Meu amigo, traga-me uma Bohemia e esqueça o resto....
- Sagres Bohemia não temos. Só temos normal, Preta e Zero…
- Então traga uma Superbock!
- Garrafa ou imperial?
- Garrafa.
- Superbock normal, Green, Twin ou Stout?
-Arre porra... já perdi a sede...
Mais logo, quando me der a sede outra vez, vou à fontinha beber água!



Lido no blogue Engarrafamentos


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Adeus (Eugénio de Andrade)



ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tengo a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade




segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Exame de Filosofia vai ser reposto no ensino secundário



A disciplina de Filosofia deverá voltar a integrar, já no próximo ano lectivo, o lote de exames obrigatórios para a conclusão do ensino secundário. Esta foi a garantia que o Ministério da Educação deu à Sociedade Portuguesa de Filosofia, indicou ao PÚBLICO o seu presidente, Ricardo Santos.


O último exame de Filosofia realizou-se em 2007. O fim desta prova, realizada no 11.º ano, fora decidido dois anos antes pelo Ministério da Educação. A disciplina de Filosofia deixou também de ser obrigatória no 12.º ano dos cursos científico-humanísticos, geralmente escolhidos pelos estudantes que querem prosseguir estudos. Deste modo deixou também de figurar entre as provas de acesso pedidas pelas instituições do ensino superior.

Estas medidas foram contestadas pela sociedade portuguesa e pela associação de professores de Filosofia e também por vários responsáveis do ensino superior, que alertaram para o perigo de uma morte a prazo da disciplina. O Ministério da Educação não forneceu números sobre a evolução do número de inscritos em Filosofia no 12.º ano. Ricardo Santos assegura que a disciplina deixou praticamente de existir neste ano de escolaridade. No 10.º e 11.º continua a ser obrigatória, mas, segundo o presidente da SPF, as medidas adoptadas contagiam também estes anos: "Registou-se uma desvalorização da disciplina. Os alunos deixaram de investir tanto nela e há uma maior desmotivação dos docentes".

O Ministério da Educação - que não respondeu às questões do PÚBLICO - terá optado agora por arrepiar caminho. Tanto Ricardo Santos, como Alexandre Franco de Sá, presidente da Associação de Professores de Filosofia, asseguram que o primeiro passo será dado já em Fevereiro próximo, com a realização, no 10.º ano, de um teste intermédio de Filosofia. A informação sobre a estrutura e conteúdos da prova já foi enviada para as escolas. Estes testes funcionam como ensaio para os exames nacionais, tendo vindo a ser realizados, nos últimos anos, nas disciplinas sujeitas a estas provas. E são facultativos. Segundo Ricardo Santos, pelo menos um terço das 600 escolas secundárias inscreveu-se para realizar o teste de Filosofia.

Ricardo Santos está convicto de que a reafirmação da importância da disciplina será bem acolhida pelos estudantes e que não será difícil cativá-los: "O ensino antes era muito centrado na história da Filosofia. Hoje esta já não tem tanto peso e o ensino é mais focado em problemas que os jovens sentem e que os perturbam e a Filosofia dá-lhes respostas diferentes para estes problemas". Defende, no entanto, que o programa em vigor "está muito ultrapassado, não sendo, por isso, adequado".


Uma notícia do jornal Público (11-Novembro-2010)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Livro do desassossego (Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa, por Júlio Pomar

Um paradoxo. Fernando Pessoa vem pela primeira vez a este blogue não como poeta, mas como prosador, pela mão do seu heterónimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa,  autor do Livro do desassossego. Serão publicados mais excertos deste livro.


Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.


O que são os heterónimos?



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O estado de graça (Clarice Lispector)


Clarice Lispector



O ESTADO DE GRAÇA

Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.

O estado de graça de que falo é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.

No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe (pessoa ou coisa) respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo é impalpável.

Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.

As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como uma anunciação. Não sendo porém precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.

Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe (não há nenhum transe), sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.

Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.

Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado freqüentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.

Também é bom que não venha tantas vezes quanto se queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade - esqueci de dizer que e estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam -tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida.

Não, mesmo se dependesse de mim, eu não quereria ter com muita freqüência o estado de graça. Seria como cair num vício, iria me atrair como um vício, eu me tornaria contemplativa como os fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a querer viver permanentemente em graça. E isto representaria uma fuga imperdoável ao destino simplesmente humano, que é feito de luta e sofrimento e perplexidades e alegria menores.

Também é bom que o estado de graça demore pouco. Se durasse muito, bem sei, eu que conheço minhas ambições quase infantis, eu terminaria tentando entrar nos mistérios da natureza. No que eu tentasse, aliás, tenho a certeza de que a graça desapareceria. Pois ela é dádiva e, se nada exige, desvaneceria se passássemos a exigir dela uma resposta. É preciso não esquecer que o estado de graça é apenas uma pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é a entrada nele, nem dá o direito de se comer frutos de seus pomares.

Sai-se do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos e, embora não se tenha sorrido, é como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo fiquem acentuados os estreitos limites dessa condição. É exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.

Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça.


Clarice Lispector



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Balada da praia dos cães (José Cardoso Pires)



Presente nos autos e em figura própria Elias Santana, chefe de brigada. Indivíduo de fraca compleição física, palidez acentuada, 1 metro e 73 de altura; olhos salientes (exoftálmicos) denotando um avançado estado de miopia, cor de pele e outros sinais reveladores de perturbações digestivas, provavelmente gastrite crónica. No aspecto exterior nada de particular a registar como circulante do mundo em geral a não ser talvez a unha do dedo mínimo que é crescida e envernizada, unha de guitarrista ou de mágico vidente, e que faz realçar o anel de brasão exposto no mesmo dedo. Veste habitualmente casaco de xadrez, calça lisa e gravata de luto (para os devidos efeitos) com alfinete de pérola adormecida; caranguejo de ponteiros fluorescentes, marca Longines, que usa no bolso superior do casaco com amarra de ouro presa à lapela; farolins de lentes grossas, à toupeira, com comportamento mortiço; carece de capilares no couro cabeludo, o crânio é pautado por cabelinhos poucos mas poupados, e distribuídos de orelha a orelha.

[Elias Cabral Santana, folha contida: n. em Lisboa 1909, na freguesia da Sé, filho dum juiz de comarca. Estudos liceais no Colégio de São Tiago Apóstolo, que abandona por morte dos pais, tendo ficado aos cuidados da irmã até à maioridade. Jogador nocturno e cantor lírico em academias de bairro. Após um período de internamento no Sanatório da Flamenga, Loures, é admitido como estagiário na Polícia Judiciária (10-7-1934) por despacho do então director, juiz Bravo. À margem é conhecido por Covas ou Chefe Covas decerto porque, prestando serviço na Secção de Homicídios há mais de vinte anos, tem passado a vida a desenterrar mortes trabalhadas e a distribuir assassinos pelos vários jazigos gradeados que são as penitenciárias do país. Com louvor e dedicação, também consta da sua folha de serviços. Com a reserva e a sem paixão que competem à sua especialidade e tanto assim que jamais pronuncia a palavra Defunto, Finado ou Falecido a propósito do cadáver que lhe é confiado, preferindo tratá-lo por De Cujus que sempre é um termo de meretíssimo juiz. Elias Santana, o Covas, costuma responder que «anda aos calados» quando porventura o encontram em serviço a horas e em locais inesperados e por aqui já se pode avaliar a discrição e a naturalidade com que encara os mortos e os seus matadores, nada mais tendo a declarar.]

José Cardoso Pires

Do seu romance  Balada da praia dos cães (1982)



quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Os meus amigos (Camilo Castelo Branco)

Camilo Castelo Branco numa nota da antiga moeda portuguesa


OS MEUS AMIGOS

Amigos cento e dez e talvez mais
Eu já contei! Vaidades que eu sentia.
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia,
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez, houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco (1825-1890)


Mais dados sobre este autor: Casa de Camilo


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A importância do "Não sei..."

Armadilha para Executivos, serigrafia de Regina Silveira

A IMPORTÂNCIA DO "NÃO SEI..."

"Esta é para todos os que dizem que "não sei não é resposta"!
A importância do: "não sei". Se ainda não sabes qual é a tua verdadeira vocação, imagina a seguinte cena:

Estás a olhar pela janela, não há nada de especial no céu, somente algumas nuvens aqui e ali... aí chega alguém que também não tem nada para fazer e pergunta: – Será que vai chover hoje?

Se responderes "com certeza...", a tua área é Vendas: – o pessoal de Vendas é o único que tem sempre a certeza de tudo.

Se a resposta for "sei lá, estou a pensar noutra coisa..." – então a tua área é Marketing: – o pessoal de Marketing está sempre a pensar naquilo em que os outros não estão a pensar.

Se responderes "sim, há uma boa probabilidade..." – És da área de Engenharia: – o pessoal da Engenharia está sempre disposto a transformar o universo em números.

Se a resposta for "depende..." – nasceste para Recursos Humanos: – uma área em que qualquer facto estará sempre na dependência de outros factores.

Se responderes "ah, a meteorologia diz que não..." – Então és da área de Contabilidade: o pessoal da Contabilidade confia mais nos dados do que nos próprios olhos.

Se a resposta for "sei lá, mas por via das dúvidas eu trouxe um guarda-chuva": – então o teu lugar é na área Financeira que deve estar sempre bem preparada para qualquer mudança de tempo.

Agora, se responderes "não sei"... há uma boa chance de teres uma carreira de sucesso e chegares a director da empresa. De cada 100 pessoas, só uma tem a coragem de responder "não sei" quando não sabe.

Os outros 99 acham sempre que precisam de ter uma resposta pronta, seja ela qual for, para qualquer situação. Não sei é sempre uma resposta que economiza o tempo de toda a gente e predispõe os envolvidos a conseguir dados mais concretos antes de uma tomada de decisão.

Parece simples, mas responder "não sei" é uma das coisas mais difíceis de se aprender na vida corporativa. Porquê? Eu, sinceramente, "não sei".



sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Infância (Carlos Drummond de Andrade)



Para além de ler estes versos de Carlos Drummond de Andrade, podemos ouvi-los na voz do próprio poeta.


INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
cafe gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Carlos Drummond de Andrade








terça-feira, 2 de novembro de 2010

Cães, marinheiros (Herberto Helder)



CÃES, MARINHEIROS

Era um cão que tinha um marinheiro. O cão perguntou à esposa, que se pode fazer de um marinheiro? Põe-se de guarda ao jardim, respondeu ela. – Não se deve deixar um marinheiro à solta no jardim, que fica perto do mar. Um marinheiro é uma criatura derivada por sufixação, e pode recear-se o poder do elemento de base: o radical mar. Em vez de guardar o jardim, ele acabaria por fugir para o mar. – Deixá-lo fugir, disse a esposa do cão. Mas ele não estava de acordo. Que um facto deveria ser esse mesmo facto até ao limite do possível: quem possui um marinheiro para guardar o jardim deve procurar mantê-lo a todo o custo, assim como o cão, ou o casal de cães, que não tiver um marinheiro deve não tê-lo até a isso ser absolutamente forçado. – Nesse caso, só nos resta ir para uma terra do interior, longe do mar, disse a cadela. E então foram para o interior, levando pela trela o marinheiro açaimado. Durante o percurso viram muitas paisagens. O marinheiro estava espantado com as paisagens que podem existir longe do mar. Fez diversas observações a esse respeito, provocando o risonho latido dos cães que, pela sua parte, concordavam em que tinham um marinheiro muito inteligente. – Nem todos os cães têm a nossa sorte, disse o cão, pois conheço vários cães que são donos de vários marinheiros estúpidos. Iam por isso bastante contentes e diziam, a outros cães com quem se cruzavam, que possuíam um marinheiro invulgarmente esperto. – Ele tem uma filosofia das paisagens, dizia o cão. Um cão da Estrela, que encontraram naturalmente perto da Serra da Estrela, perguntou-lhes se o marinheiro gostava de sardinhas. – Adora-as, respondeu a cadela.– Isso não me admira nada, disse o indígena. E na verdade não parecia admirado. Quando chegaram ao mais interior possível, alugaram uma casa com um jardim e puseram o marinheiro a guardá-lo.– Guarda-o, disseram. Deixaram-lhe ao lado uma dúzia de latas de sardinhas e foram para dentro de casa. Durante sete dias e sete noites, o marinheiro reflectiu sobre as paisagens do interior e comeu as sardinhas de conserva. Depois foi atacado de esgana, e começou a andar em círculos cada vez mais apertados no meio do jardim. Os cães observavam-no da janela e viam que o seu marinheiro perdia as forças a cada nova volta. Um dia, ao anoitecer, caiu para o lado resfolegando.– O mar, ouviram-no dizer. Então foram para dentro, e dormiram. De manhã vieram cedo ao jardim e verificaram que o marinheiro estava morto.– Era um marinheiro tão esperto, disse a cadela. – Pois era, disse o cão, foi pena. E enterraram o marinheiro debaixo de uma acácia. Mas como já se haviam habituado à vida do interior, não regressaram ao litoral. Nunca mais tiveram marinheiros. – Para quê?, dizia a cadela, ralações já existem de sobra. E quem se atreve a negar que ela tinha razão?

Herberto Hélder

Do seu livro Os Passos em Volta (1963)